- Como é que consegues? Como é que consegues ainda escrever, sabendo que ela anda ao deus-dará nos braços de outrem?
- Não há nada que eu possa fazer para contrariar a realidade. Nem tão pouco me quero iludir com uma alternativa. Tudo o que escrevo, já o sabes, ou é sobre ela, ou é para ela. Assim, ela está sempre comigo, na minha escrita, à espreita em cada canto de cada parágrafo travado. Foi esta a forma que eu encontrei para a viver todos os dias em que ela me faz falta. Em todos esses dias, acredita, abro-me ao mundo e distribuo palavras que torneiam o seu corpo que ainda tenho em memória. Replico momentos, projecto outros tantos num futuro sintético que ao passado pertence. Volto a sentir e a chorar, rio-me de novo, gargalho também, agora sozinho, porém. Assim abraço, com força, a sua terrível e maciça ausência que me esmaga até à unidimensionalidade irreversível. E com as palavras a encontro e reconheço. Nestas palavras eu a eternizo e a idolatro à distância, a mesma que separa os deuses dos meros mortais onde me incluo. Ao escrever-lhe vivo de novo para ela. Ao escreve-la, ela vive de novo dentro de mim...