Mais à frente, encontro uma paragem de autocarros onde me abrigo por minutos. O anúncio publicitário era relativo a um nova colecção de langerie, que destronou a minha recém-feita teoria sobre marketing. Não pude sorrir indiferentemente, pois a minha boca estava aberta face a tanta beleza feminina. Que seios arrojados, que ancas tão bem definidas, que carinha laroca irresistível ao beijo. Todas estas configurações, engenhosamente ordenadas de modo a excitarem qualquer homem heterosexualmente bem orientado, fizeram-me lembrar da força da natureza que arrebentava à minha volta. A chuva, o caudal de água acumulado pelo entupimento das valetas, as folhas frágeis das árvores que esvoaçam de boleia com o vento irado, o som, todos os sons, os relâmpagos que estalam enfurecidos lá para cima, todo este movimento, esta energia eram fantásticos.
Comecei a correr e a gritar desalmadamente “Amo-te Natureza”. Comecei a delirar com tudo aquilo. Adorava os meus pés molhados, aquelas pingas constantes na ponta do meu nariz, os flashes, os trovões eram musica para os meus ouvidos que embalava a minha alma. Durante a maratona questionava-me se me estava a molhar mais ou menos do que quanto estava a andar normalmente. Mas a resposta pouco interessava, o importante era a água a cair sobre mim, era estar molhado de natureza. O que eu desejava era sentir aquele espectáculo com todos os meus sentidos, era sentir-me parte daquela manifestação de energia.
As minhas botas chapinhavam nas poças com alegria. Cantava, falava, retomava a gritaria. Rebolava pelo chão, fingia que nadava nas poças maiores. Quem me visse poderia pensar que eu andava a fazer um qualquer anúncio para uma qualquer associação ambientalista, ou que tinha escapado do manicómio. Porém, na ausência de câmaras de filmar e de todo o pessoal e material necessário para uma produção televisiva, a segunda opção poderia parecer mais plausível.
Tudo acabou, contra a minha vontade, com um grande trambolhão seguido do tal espirro ameaçador, que finalmente saíra em liberdade total. Um atacador desapertado fora a causa da manifestação pura, ou mesmo, demonstração da lei da gravidade.
Voltei para casa, cambaleando, cheio de sono e de dor. Despi-me, vesti o pijama, sequei o mais que pude a cabeça com uma toalha, e caí na cama, penso que adormecendo mesmo durante a queda…
Consegui dormir finalmente…
domingo, março 25, 2007
quarta-feira, março 21, 2007
Enxaqueca
Levantei-me sem sono, peguei no relógio e: “3h15m da matina e ainda não preguei olho!”. Frustrado, tentei novamente embalar-me ao som da chuva que caía lá fora. Em vão foi tal acto desesperado, em busca de algum sossego no mundo maravilhoso do sonho. Mais uma vez tentei, mas o portal do fantástico teimou em não se abrir para mim.
Desisti e voltei as costas, não valia a pena, não ia conseguir dormir. Coloquei os pés firmes no chão firme e sentei-me na cama. Com os cotovelos espetados a meio das coxas, aleijando-me até, ajeitei para trás o cabelo despenteado pelos lençóis.
Na mesinha de cabeceira estava um livro do qual já não me lembrava da história, nem da capa, nem do autor…ainda duvidei que fosse meu. Porém, não perdi muito tempo com tal intriga e caminhei para a cozinha, sonâmbulo.
Café, leite, chá, água da torneira, água do garrafão, tinha que escolher qualquer coisa, precisava de ingerir algo para me sentir vivo. Optei pelo líquido escuro do café. Se já estava vigilante, agora iria sentir-me como um predador atento na caça à sua presa.
Voltei para a divisão do martírio, o meu quarto. Mais especificamente para o local da tortura, a cama. Liguei o rádio, mas nada nem ninguém acudiu do outro lado. Experimentei todas as estações e na mesma, nada. O ruído chuviscado das estações difusoras, em tudo se assemelhava ao som da água apressada lá fora, conjugando-se ambos numa harmonia perfeita para os meus ouvidos.
Continuei a chávena de café que ainda ia a meio. Cada gesto singular de beber era, por vezes, interrompido por breves e inesperados espirros. Não seguindo os conselhos maternais habituais, acabei por expor a nudez dos meus pés, ao frio temperamento do soalho de mosaico.
Com o sono mais que recalcado pela acção da cafeína, fui até ao cabide e peguei da minha gabardina. Vesti-a. A acompanhar tinha umas botas, que diziam ser impermeáveis. Chaves sim, carteira sim (sabe-se lá para quê) e cabeça…bem…estava quase tudo.
Saí de casa. Noite estava escura e encharcada, a lua era uma recém-nascida e os candeeiros municipais não davam luz. Pareciam ter-se escondido, medrosos, receosos, com a acção intolerante e majestosa dos relâmpagos. Pareciam ter-se curvado perante a medonha tempestade, ao contrário de mim, que decidi enfrenta-la, num confronto passivo e amigável.
Rapidamente, os meus pés começaram a sentir-se frios. As botas não pareciam ser assim tão impermeáveis como dizia o anúncio que, há semanas, se alastrava pelas paragens de autocarros e revistas ordinárias. Mais uma vez tenho razões para acreditar que o que é dito nas campanhas de marketing não existe, porque é tudo mentira. Agora me apercebo que os anúncios são piadas secas, que passam por verdades que elucidam as pessoas, fazendo estas correr até às lojas comprar o produto que pensam ser apetrechado pelas mais avançadas tecnologias. Concluindo isto, limito-me a sorrir indiferentemente para os cartazes, fingindo terem alguma piada.
Deixo o pensamento e volto a mim, como ser único e constipado, no meio de uma algazarra natural.
Sigo a calçada desviando-me de certas poças, contudo, não conseguindo evitar outras. O meu nariz pinga gelado, mas não me atrevo a limpa-lo, até porque tal limpeza iria revelar-se inútil, poucos instantes depois. Um espirro que já ameaçava sair, desde há cinco minutos atrás, continua a insistir fortemente.
Desisti e voltei as costas, não valia a pena, não ia conseguir dormir. Coloquei os pés firmes no chão firme e sentei-me na cama. Com os cotovelos espetados a meio das coxas, aleijando-me até, ajeitei para trás o cabelo despenteado pelos lençóis.
Na mesinha de cabeceira estava um livro do qual já não me lembrava da história, nem da capa, nem do autor…ainda duvidei que fosse meu. Porém, não perdi muito tempo com tal intriga e caminhei para a cozinha, sonâmbulo.
Café, leite, chá, água da torneira, água do garrafão, tinha que escolher qualquer coisa, precisava de ingerir algo para me sentir vivo. Optei pelo líquido escuro do café. Se já estava vigilante, agora iria sentir-me como um predador atento na caça à sua presa.
Voltei para a divisão do martírio, o meu quarto. Mais especificamente para o local da tortura, a cama. Liguei o rádio, mas nada nem ninguém acudiu do outro lado. Experimentei todas as estações e na mesma, nada. O ruído chuviscado das estações difusoras, em tudo se assemelhava ao som da água apressada lá fora, conjugando-se ambos numa harmonia perfeita para os meus ouvidos.
Continuei a chávena de café que ainda ia a meio. Cada gesto singular de beber era, por vezes, interrompido por breves e inesperados espirros. Não seguindo os conselhos maternais habituais, acabei por expor a nudez dos meus pés, ao frio temperamento do soalho de mosaico.
Com o sono mais que recalcado pela acção da cafeína, fui até ao cabide e peguei da minha gabardina. Vesti-a. A acompanhar tinha umas botas, que diziam ser impermeáveis. Chaves sim, carteira sim (sabe-se lá para quê) e cabeça…bem…estava quase tudo.
Saí de casa. Noite estava escura e encharcada, a lua era uma recém-nascida e os candeeiros municipais não davam luz. Pareciam ter-se escondido, medrosos, receosos, com a acção intolerante e majestosa dos relâmpagos. Pareciam ter-se curvado perante a medonha tempestade, ao contrário de mim, que decidi enfrenta-la, num confronto passivo e amigável.
Rapidamente, os meus pés começaram a sentir-se frios. As botas não pareciam ser assim tão impermeáveis como dizia o anúncio que, há semanas, se alastrava pelas paragens de autocarros e revistas ordinárias. Mais uma vez tenho razões para acreditar que o que é dito nas campanhas de marketing não existe, porque é tudo mentira. Agora me apercebo que os anúncios são piadas secas, que passam por verdades que elucidam as pessoas, fazendo estas correr até às lojas comprar o produto que pensam ser apetrechado pelas mais avançadas tecnologias. Concluindo isto, limito-me a sorrir indiferentemente para os cartazes, fingindo terem alguma piada.
Deixo o pensamento e volto a mim, como ser único e constipado, no meio de uma algazarra natural.
Sigo a calçada desviando-me de certas poças, contudo, não conseguindo evitar outras. O meu nariz pinga gelado, mas não me atrevo a limpa-lo, até porque tal limpeza iria revelar-se inútil, poucos instantes depois. Um espirro que já ameaçava sair, desde há cinco minutos atrás, continua a insistir fortemente.
segunda-feira, março 19, 2007
Título
No fundo do copo avisto,
As últimas gotas do meu saber,
Sei que vou pedir mais disto
Para continuar a beber;
Encharco-me de sono
E de confiança também,
Gasto mais um troco
Que me deu minha mãe;
Vindo até mim o empregado,
Trazendo-me o pedido e afirmando:
“O Sr. já está embriagado!”;
Respondo eu: “Não estou, vou estando!”;
Nos delírios sonâmbulos,
Sou um náufrago na bebida
Quero, posso, mando-os
Para o mais fundo da minha vida;
Evaporam-se as tormentas arreliantes,
Pelos arrotos saiem disparadas,
Bafo alcoólico, pesado, intoxicante
Por minhas mãos são abafadas;
Ui! Tanto que já bebi
Tanto que gastei
Só desejo sair daqui
Arrependo-me do que não sei;
Pago o último desejo
Que no bucho vai a nado
Só para rimar: azulejo
E ontem comi um panado
Entre Coelhinho da Páscoa e Pai Natal
As diferenças não são assim tão grandes
Agora entre homem e macaco
Por favor, não te enganes;
Fugindo ao tema começado
Com que iniciei este poema
Termino agora, todo borraxo
Completo, de cima a baixo
Vou estrelar agora um ovo,
Só para poder escrever “gema”
As últimas gotas do meu saber,
Sei que vou pedir mais disto
Para continuar a beber;
Encharco-me de sono
E de confiança também,
Gasto mais um troco
Que me deu minha mãe;
Vindo até mim o empregado,
Trazendo-me o pedido e afirmando:
“O Sr. já está embriagado!”;
Respondo eu: “Não estou, vou estando!”;
Nos delírios sonâmbulos,
Sou um náufrago na bebida
Quero, posso, mando-os
Para o mais fundo da minha vida;
Evaporam-se as tormentas arreliantes,
Pelos arrotos saiem disparadas,
Bafo alcoólico, pesado, intoxicante
Por minhas mãos são abafadas;
Ui! Tanto que já bebi
Tanto que gastei
Só desejo sair daqui
Arrependo-me do que não sei;
Pago o último desejo
Que no bucho vai a nado
Só para rimar: azulejo
E ontem comi um panado
Entre Coelhinho da Páscoa e Pai Natal
As diferenças não são assim tão grandes
Agora entre homem e macaco
Por favor, não te enganes;
Fugindo ao tema começado
Com que iniciei este poema
Termino agora, todo borraxo
Completo, de cima a baixo
Vou estrelar agora um ovo,
Só para poder escrever “gema”
sábado, março 17, 2007
Magia
Lua cheia. Na algazarra dessa noite, o teu olhar calmo apresentou-se ao meu, numa empatia, desde logo, confortadora e deliciosamente embaraçante. Entretanto, um aroma. Uma essência delicada, primordial, cativante…
Donde vem?
Ah! Descobri! É teu. Mas de que é feito? Não interessa, vem de ti…
Arrepio-me. Tenho calor que me queima a carne. O coração que bombeia suor por todo o meu corpo, pelas veias, pelos músculos paralíticos. Entre os dedos, escorre-me água de embaraço, um mar de sentimentos improvisados pela energia do auge daquele momento. Os olhos, meu Deus, os olhos fixos em mais nada senão nos teus. Estou cego para o mundo, vejo-te só a ti: a extravagância do tudo, na imensidão do nada. Estamos sós.
De súbito, um remoinho subtil cria aquela sensaçãosinha estranha do estômago, de ansiedade em fúria, de desejo novato, que, oprimido, tende a explodir num arco-íris de emoções. …
Aguento-me na estabilidade que ainda me resta nos pés. Finjo-me firme e seguro. Sucedi? Penso que não, apesar da mímica.
A azáfama daquela noite entrara em mim, vivia-a agora em primeira pessoa, partilhando-a com outra.
Relembro esse princípio, à doce distância de uma fresca memória protectora, que me transporta para o halo da minha felicidade.
Que mais poderia eu desejar, do que estar contigo, neste momento, à beira-mar? Que testemunho maior para tudo o que nos une, que a imensidão azul destas águas ondulantes?
Sinto-me bem, ainda não te disse?
De súbito, num acto surpreendente e imprevisível, tocas-me na mão. És mesmo tu, a tua pele?! Por momentos, julguei-me sonhando. Desperto para a realidade perfeita daquele momento glorioso. Continuo a sentir-te.
O meu corpo estremece com o bater das ondas me embalam o meu coração. Sinto medo. Estou nervoso. Mas porquê? Não compreendo; não é preciso.
Sou livre contigo agora. Como as gaivotas, voemos ao som do mar, perfumados pela maresia do elo que nos une, até aos fins destas águas. Apreciemos de longe o alaranjado do pôr-do-sol. Não! Seria pouco! Vamos até ele, como tontos, cobrirmo-nos com o seu bronze, e gritarmos aos céus a nossa loucura…
Estou embriagado de felicidade; as palavras enrolam-se-me na cabeça como as ondas na areia. Silêncio. Contudo, ouço-te…ouço o eco o teu olhar...no vazio dos meus ouvidos. Sinto todo o teu corpo na minha mão…ai! que arrepios pela espinha!!
O sol pôs-se, preguiçoso, ao fundo da eternidade azul, que marcará as nossas memórias, no álbum de recordações das nossas vidas.
Despeço-me. Despedes-te….
Nada do vivido acabou, tudo continua aqui, comigo, no meu coração, na mão que me tocavas, como sangue coagulado nas veias.
Que me querias dizer com a voz do teu olhar? Ainda agora, ouço o seu eco…
E eu tantas coisas te segredei em pensamento…tantas…mas…
este segredo é como uma palavra debaixo da língua…
domingo, março 11, 2007
Garantidíssima
Deixei o emprego, depois de ter passado o dia a fazer rigorosamente nada. Entro no carro, penso para onde quero ir, decido e entrego-me à sua aconchegante turbulência que me transforma num sonâmbulo acordado. Trabalhava num bar, perto do centro da cidade. Não muito grande e modesto, mas acima de tudo, bem frequentado. As suas enormes traves coladas ao tecto e as pesadas escadas de pedra, que lhe permitiam acesso por uma ornamental e ferrada porta, davam-lhe um ar de antigo, de taberna.
Embora não houvessem pipas, avistavam-se à entrada, numa prateleira alta por de trás do balcão, uma enorme fila de garrafas. Umas de colecção, que o patrão insistia em manter limpas sem qualquer grama de pó, outras para consumo no local. A minha função era essencialmente servir às mesas, o que não me impedia de, em dias mais agitados, ficar responsável pelo balcão, pelo som, ou até mesmo pelas limpezas. Era feliz ali. Tinha os meus clientes habituais, sabia-lhes o menu de memória.
- Então é o mesmo do costume?! – perguntava eu, retoricamente.
E o cliente sorria-me.
No fundo, era esta a minha vida, cliente-balcão-cliente.
Volto à estrada, negra, como o céu daquela noite. As únicas estrelas que a iluminavam, eram os faróis do carro, que já ameaçavam fundir-se em buracos negros. Nessa noite, não tivera trabalho nenhum, era época de ferias, e por conseguinte, a cidade estava deserta.
O patrão avarento e ganancioso, insistia em abrir o estabelecimento mesmo em alturas mortas como esta. A sua noção de nada era brutalmente exagerada para a imensidão das coisas, para o valor absoluto do mundo e do homem. Assemelhava, muitas vezes, as suas ideias ao “efeito borboleta”. - Um só cêntimo pode mover mercados - resumia ele todo o seu intelectualismo económico. Contudo, eu suspeitava que tal pensamento, ele tivera improvisado no momento para ficar bem como conclusão. Contrariando-me, fazia-me querer que era já uma filosofia de família.
Tretas. Nada a fazer.
Nós, os seus discípulos, como ele nos chamava, tínhamos que gramar aqueles dias de seca, pois, vender apenas um café, ou uma bebida branca era lucro para o “Centro”. Sim, era como se chamava o bar. A casa está perto. Apesar de não ver nada, naquela imensidão escura, eu sentia o calor do lar a aquecer-me o coração. Sentia o suave casaco de pele do meu gato a rosar-me nas pernas. Sentia-me, desejava o conforto do sofá e o ruído embalador da televisão desinteressante.
Entro em casa e logo me apercebo de que o habitual não se concretizava naquele momento. Faltava-me o som miado do Igor, do andar dourado das suas patas elegantes, da leve cauda no ar alegrada por me ver.
- Igor, Igor! – chamava eu, começando a sentir-me aflito pela aquela situação extraviada do normal. Fui ao seu sitiozinho e apenas o silêncio comovente do seu olhar fixo não sei onde, me derrotara numa percepção fatal ajoelhada brutalmente no chão. O guizo calara-se para sempre, a passerelle felina mudara de rumo, as suas pupilas alargavam-se exponencialmente, abraçando, agora, as sombras da sua própria morte. Não falei, nem tão pouco pensei…por momentos fiquei vazio, oco de um espanto lúgubre, de uma tristeza que me assombrava o alma e soluçava no mais fundo do meu ser.
Via o Igor no arrefecimento da vida, via-o distanciando-se cada vez mais para um sitio que eu desconhecia – e ainda ignoro – e ele, coitadinho, possivelmente muito menos. Seria talvez fazer uma daquelas viagens longas, fechado numa caixa, sem saber o seu destino, mas contudo, confiando em mim. Mas agora viajava sozinho…
Verto a primeira lágrima…e pouco depois as seguintes. Era raiva que me lavava a cara de ódio pela vida. Um mar de sentimentos crescia ali, inundando-me a razão com questões existenciais, embaraçando-a com formulários sobre tudo, encostando-a à parede, ameaçada pelo cutelo aguçado da vida!
Pergunto-me o que é a vida, e qual a sua finalidade!? Será o seu objectivo último a sua própria ruína? Será a vida uma casa que nasce construída e aos poucos se demole? O que é, afinal, isto de viver? A vida não é mais que um paradoxo, em cujo sentido é inato e absoluto o estado de viver morrendo. A vida é a morte. No mais puro sentido do verbo, apenas vivemos no primeiríssimo instante do nosso primordial nascimento. É este caminhar para o fim, ou melhor, é este termo dinâmico que nos vai derretendo o corpo e apaziguando a alma com fortes distracções e prazeres, mergulhando-nos numa certeza ilusória, fazendo-nos querer que tudo é eterno e fantástico. A morte não pode caracterizar algo que não existe. Não pode existir “o morto”, porque nessa altura já não existirá entidade passível de ser caracterizada: o objecto adjectivado desaparecera. Nada mais é que massa biológica em decomposição, carne apodrecida que serve de alimento aos demais habitantes dos sete palmos abaixo da terra, onde o sangue coagula e azeda a terra fértil de luto. Volto ao Universo e ao Mundo e ao Igor… De pescoço pendurado para o lado de fora da sua caminha de verga, e com resto do corpo em forma de lua, Igor chamava por mim com o seu olhar para a porta. Quanto não miara, quanto não berrara por ajuda, quanto não chamara pelo alguém que jamais viria socorre-lo em útil tempo. Desculpa-me…só a mim me convidavas para assistir ao teu cortejo fúnebre, onde serias só tu o rei, e eu o culpado pelo teu imponente império.
A borda da tua enxerga, onde ousavas dormir sempre tranquilo, transformara-se tua guilhotina desesperada, que te cortara desde mundo, que te tirara o sentido único da tua essência, do teu ser. Contigo aprendi, que a morte não é mais do que o fim do "ir morrendo", e não o princípio de um estado inerte. Para além dela, nada mais há a considerar. Mortos vamos nós ficando, durante este chaminhar a que chamamos de Vida.
"Nascer" é começo para o "Morrer"...nascemos a morrer para a morte.
Por isso mesmo eu digo: a morte é a coisa mais certa que temos, é garantidíssima!
Embora não houvessem pipas, avistavam-se à entrada, numa prateleira alta por de trás do balcão, uma enorme fila de garrafas. Umas de colecção, que o patrão insistia em manter limpas sem qualquer grama de pó, outras para consumo no local. A minha função era essencialmente servir às mesas, o que não me impedia de, em dias mais agitados, ficar responsável pelo balcão, pelo som, ou até mesmo pelas limpezas. Era feliz ali. Tinha os meus clientes habituais, sabia-lhes o menu de memória.
- Então é o mesmo do costume?! – perguntava eu, retoricamente.
E o cliente sorria-me.
No fundo, era esta a minha vida, cliente-balcão-cliente.
Volto à estrada, negra, como o céu daquela noite. As únicas estrelas que a iluminavam, eram os faróis do carro, que já ameaçavam fundir-se em buracos negros. Nessa noite, não tivera trabalho nenhum, era época de ferias, e por conseguinte, a cidade estava deserta.
O patrão avarento e ganancioso, insistia em abrir o estabelecimento mesmo em alturas mortas como esta. A sua noção de nada era brutalmente exagerada para a imensidão das coisas, para o valor absoluto do mundo e do homem. Assemelhava, muitas vezes, as suas ideias ao “efeito borboleta”. - Um só cêntimo pode mover mercados - resumia ele todo o seu intelectualismo económico. Contudo, eu suspeitava que tal pensamento, ele tivera improvisado no momento para ficar bem como conclusão. Contrariando-me, fazia-me querer que era já uma filosofia de família.
Tretas. Nada a fazer.
Nós, os seus discípulos, como ele nos chamava, tínhamos que gramar aqueles dias de seca, pois, vender apenas um café, ou uma bebida branca era lucro para o “Centro”. Sim, era como se chamava o bar. A casa está perto. Apesar de não ver nada, naquela imensidão escura, eu sentia o calor do lar a aquecer-me o coração. Sentia o suave casaco de pele do meu gato a rosar-me nas pernas. Sentia-me, desejava o conforto do sofá e o ruído embalador da televisão desinteressante.
Entro em casa e logo me apercebo de que o habitual não se concretizava naquele momento. Faltava-me o som miado do Igor, do andar dourado das suas patas elegantes, da leve cauda no ar alegrada por me ver.
- Igor, Igor! – chamava eu, começando a sentir-me aflito pela aquela situação extraviada do normal. Fui ao seu sitiozinho e apenas o silêncio comovente do seu olhar fixo não sei onde, me derrotara numa percepção fatal ajoelhada brutalmente no chão. O guizo calara-se para sempre, a passerelle felina mudara de rumo, as suas pupilas alargavam-se exponencialmente, abraçando, agora, as sombras da sua própria morte. Não falei, nem tão pouco pensei…por momentos fiquei vazio, oco de um espanto lúgubre, de uma tristeza que me assombrava o alma e soluçava no mais fundo do meu ser.
Via o Igor no arrefecimento da vida, via-o distanciando-se cada vez mais para um sitio que eu desconhecia – e ainda ignoro – e ele, coitadinho, possivelmente muito menos. Seria talvez fazer uma daquelas viagens longas, fechado numa caixa, sem saber o seu destino, mas contudo, confiando em mim. Mas agora viajava sozinho…
Verto a primeira lágrima…e pouco depois as seguintes. Era raiva que me lavava a cara de ódio pela vida. Um mar de sentimentos crescia ali, inundando-me a razão com questões existenciais, embaraçando-a com formulários sobre tudo, encostando-a à parede, ameaçada pelo cutelo aguçado da vida!
Pergunto-me o que é a vida, e qual a sua finalidade!? Será o seu objectivo último a sua própria ruína? Será a vida uma casa que nasce construída e aos poucos se demole? O que é, afinal, isto de viver? A vida não é mais que um paradoxo, em cujo sentido é inato e absoluto o estado de viver morrendo. A vida é a morte. No mais puro sentido do verbo, apenas vivemos no primeiríssimo instante do nosso primordial nascimento. É este caminhar para o fim, ou melhor, é este termo dinâmico que nos vai derretendo o corpo e apaziguando a alma com fortes distracções e prazeres, mergulhando-nos numa certeza ilusória, fazendo-nos querer que tudo é eterno e fantástico. A morte não pode caracterizar algo que não existe. Não pode existir “o morto”, porque nessa altura já não existirá entidade passível de ser caracterizada: o objecto adjectivado desaparecera. Nada mais é que massa biológica em decomposição, carne apodrecida que serve de alimento aos demais habitantes dos sete palmos abaixo da terra, onde o sangue coagula e azeda a terra fértil de luto. Volto ao Universo e ao Mundo e ao Igor… De pescoço pendurado para o lado de fora da sua caminha de verga, e com resto do corpo em forma de lua, Igor chamava por mim com o seu olhar para a porta. Quanto não miara, quanto não berrara por ajuda, quanto não chamara pelo alguém que jamais viria socorre-lo em útil tempo. Desculpa-me…só a mim me convidavas para assistir ao teu cortejo fúnebre, onde serias só tu o rei, e eu o culpado pelo teu imponente império.
A borda da tua enxerga, onde ousavas dormir sempre tranquilo, transformara-se tua guilhotina desesperada, que te cortara desde mundo, que te tirara o sentido único da tua essência, do teu ser. Contigo aprendi, que a morte não é mais do que o fim do "ir morrendo", e não o princípio de um estado inerte. Para além dela, nada mais há a considerar. Mortos vamos nós ficando, durante este chaminhar a que chamamos de Vida.
"Nascer" é começo para o "Morrer"...nascemos a morrer para a morte.
Por isso mesmo eu digo: a morte é a coisa mais certa que temos, é garantidíssima!
Revisited #1
Não te vi mais, mas sinto-te todos os dias no alto-relevo da tatuagem que esculpiste em mim. Não há dor nem cor. Há-te. Tu hás em mim em f...
-
Já te disse isto hoje? E ontem, contei-te? Perco-me na minha própria repetibilidade sistemática, onde procuro arranjar maneira de te contar ...
-
Não te vi mais, mas sinto-te todos os dias no alto-relevo da tatuagem que esculpiste em mim. Não há dor nem cor. Há-te. Tu hás em mim em f...
-
Pergunta-me se ainda és o meu fogo se acendes ainda o minuto de cinza se despertas a ave magoada que se queda na árvore do meu sangue Pe...