domingo, março 11, 2007

Garantidíssima

Deixei o emprego, depois de ter passado o dia a fazer rigorosamente nada. Entro no carro, penso para onde quero ir, decido e entrego-me à sua aconchegante turbulência que me transforma num sonâmbulo acordado. Trabalhava num bar, perto do centro da cidade. Não muito grande e modesto, mas acima de tudo, bem frequentado. As suas enormes traves coladas ao tecto e as pesadas escadas de pedra, que lhe permitiam acesso por uma ornamental e ferrada porta, davam-lhe um ar de antigo, de taberna.

Embora não houvessem pipas, avistavam-se à entrada, numa prateleira alta por de trás do balcão, uma enorme fila de garrafas. Umas de colecção, que o patrão insistia em manter limpas sem qualquer grama de pó, outras para consumo no local. A minha função era essencialmente servir às mesas, o que não me impedia de, em dias mais agitados, ficar responsável pelo balcão, pelo som, ou até mesmo pelas limpezas. Era feliz ali. Tinha os meus clientes habituais, sabia-lhes o menu de memória.
- Então é o mesmo do costume?! – perguntava eu, retoricamente.

E o cliente sorria-me.
No fundo, era esta a minha vida, cliente-balcão-cliente.

Volto à estrada, negra, como o céu daquela noite. As únicas estrelas que a iluminavam, eram os faróis do carro, que já ameaçavam fundir-se em buracos negros. Nessa noite, não tivera trabalho nenhum, era época de ferias, e por conseguinte, a cidade estava deserta.

O patrão avarento e ganancioso, insistia em abrir o estabelecimento mesmo em alturas mortas como esta. A sua noção de nada era brutalmente exagerada para a imensidão das coisas, para o valor absoluto do mundo e do homem. Assemelhava, muitas vezes, as suas ideias ao “efeito borboleta”. - Um só cêntimo pode mover mercados - resumia ele todo o seu intelectualismo económico. Contudo, eu suspeitava que tal pensamento, ele tivera improvisado no momento para ficar bem como conclusão. Contrariando-me, fazia-me querer que era já uma filosofia de família.
Tretas. Nada a fazer.

Nós, os seus discípulos, como ele nos chamava, tínhamos que gramar aqueles dias de seca, pois, vender apenas um café, ou uma bebida branca era lucro para o “Centro”. Sim, era como se chamava o bar. A casa está perto. Apesar de não ver nada, naquela imensidão escura, eu sentia o calor do lar a aquecer-me o coração. Sentia o suave casaco de pele do meu gato a rosar-me nas pernas. Sentia-me, desejava o conforto do sofá e o ruído embalador da televisão desinteressante.

Entro em casa e logo me apercebo de que o habitual não se concretizava naquele momento. Faltava-me o som miado do Igor, do andar dourado das suas patas elegantes, da leve cauda no ar alegrada por me ver.

- Igor, Igor! – chamava eu, começando a sentir-me aflito pela aquela situação extraviada do normal. Fui ao seu sitiozinho e apenas o silêncio comovente do seu olhar fixo não sei onde, me derrotara numa percepção fatal ajoelhada brutalmente no chão. O guizo calara-se para sempre, a passerelle felina mudara de rumo, as suas pupilas alargavam-se exponencialmente, abraçando, agora, as sombras da sua própria morte. Não falei, nem tão pouco pensei…por momentos fiquei vazio, oco de um espanto lúgubre, de uma tristeza que me assombrava o alma e soluçava no mais fundo do meu ser.

Via o Igor no arrefecimento da vida, via-o distanciando-se cada vez mais para um sitio que eu desconhecia – e ainda ignoro – e ele, coitadinho, possivelmente muito menos. Seria talvez fazer uma daquelas viagens longas, fechado numa caixa, sem saber o seu destino, mas contudo, confiando em mim. Mas agora viajava sozinho…

Verto a primeira lágrima…e pouco depois as seguintes. Era raiva que me lavava a cara de ódio pela vida. Um mar de sentimentos crescia ali, inundando-me a razão com questões existenciais, embaraçando-a com formulários sobre tudo, encostando-a à parede, ameaçada pelo cutelo aguçado da vida!

Pergunto-me o que é a vida, e qual a sua finalidade!? Será o seu objectivo último a sua própria ruína? Será a vida uma casa que nasce construída e aos poucos se demole? O que é, afinal, isto de viver? A vida não é mais que um paradoxo, em cujo sentido é inato e absoluto o estado de viver morrendo. A vida é a morte. No mais puro sentido do verbo, apenas vivemos no primeiríssimo instante do nosso primordial nascimento. É este caminhar para o fim, ou melhor, é este termo dinâmico que nos vai derretendo o corpo e apaziguando a alma com fortes distracções e prazeres, mergulhando-nos numa certeza ilusória, fazendo-nos querer que tudo é eterno e fantástico. A morte não pode caracterizar algo que não existe. Não pode existir “o morto”, porque nessa altura já não existirá entidade passível de ser caracterizada: o objecto adjectivado desaparecera. Nada mais é que massa biológica em decomposição, carne apodrecida que serve de alimento aos demais habitantes dos sete palmos abaixo da terra, onde o sangue coagula e azeda a terra fértil de luto. Volto ao Universo e ao Mundo e ao Igor… De pescoço pendurado para o lado de fora da sua caminha de verga, e com resto do corpo em forma de lua, Igor chamava por mim com o seu olhar para a porta. Quanto não miara, quanto não berrara por ajuda, quanto não chamara pelo alguém que jamais viria socorre-lo em útil tempo. Desculpa-me…só a mim me convidavas para assistir ao teu cortejo fúnebre, onde serias só tu o rei, e eu o culpado pelo teu imponente império.

A borda da tua enxerga, onde ousavas dormir sempre tranquilo, transformara-se tua guilhotina desesperada, que te cortara desde mundo, que te tirara o sentido único da tua essência, do teu ser. Contigo aprendi, que a morte não é mais do que o fim do "ir morrendo", e não o princípio de um estado inerte. Para além dela, nada mais há a considerar. Mortos vamos nós ficando, durante este chaminhar a que chamamos de Vida.

"Nascer" é começo para o "Morrer"...nascemos a morrer para a morte.

Por isso mesmo eu digo: a morte é a coisa mais certa que temos, é garantidíssima!

Revisited #1

  Não te vi mais, mas sinto-te todos os dias no alto-relevo da tatuagem que esculpiste em mim. Não há dor nem cor. Há-te. Tu hás em mim em f...